quinta-feira, 30 de maio de 2019

FONTE

Para Fafá.

Mora nela,
que nenhuma filosofia é tão feliz.
Nada há mais profundo que sorrir.
E é no profundo que se pode mergulhar.
A profundidade é a condição de navegar,
como singrar é melhor que sangrar.

Olha que há mais felicidade nesse mergulho
do que há metafísica nos chocolates!
Um cobrir-se que é como revelar-se,
como relevar todo mal.
Fazer atenção, apenas,
ao que se sente indescritivelmente,
inefável e doce.

Um afligir-se que é suavizar-se.
Infligir-se, de bom grado,
o que Cupido não pôde.
Ou talvez seja obra dele tudo que houve,
e o que há?

O que há é um caminho que adivinho lindo,
e a vontade de o trilhar.
Porque quem trilha avança,
e é bonito avançar.
Fazer da vida plataforma
de não dar tempo de chorar.

Deixar que tudo se revolva dentro,
que é falso esse tormento,
salvo se tormento é bom.
Não há como atirar contra o tempo,
nem decidir se é frio ou calor.

Seja como for é quente!
Não sei nada dos ingredientes
mas me nutro do sabor.

E me embriago direto da fonte,
gostando de molhar desde os pés.
Um mais bobo que se valha de pontes,
eu vou de ponta na fé.

PÚRPURA

A quem mais não sobrou
que o coração e o pensamento
sobrou muito!

Sobraram os instrumentos
para por-se a caminho.
Sobrou a forma de dar-se a ele
com a alegria que pede.

Sobrou a forma de aquecer-se por dentro.
De saber-se ao abrigo de um prolongamento
indefinido do frio.

Sobrou ritmo e a maneira de acompanhá-lo,
prestar-lhe atenção.
Sobrou a forma de exceder-se em sutileza
ou de entregar-se à emoção.

Sobrou a vela que a si mesma se sopra,
sem nem saber se há embarcação.
Saber da cor do dia se seu brilho
é de inverno ou de "verão!".

Sobrou como encantar-se da sucessão de cores das estações.
Sobrou sabê-las provisórias e de pronto retorno.

(Sobrou saber que à felicidade não a apanham engôdos).

Sobrou integrar-se
numa espiral de evolução.
Sobrou o decantado:
"Sentir com inteligência,
pensar com emoção".

Só não sobrou sobrar-se,
soçobrar-se.


sexta-feira, 24 de maio de 2019

ILITCH

Uma vida toda, dada.
E ele no encalço de nada.
Na busca de posição,
da imposição de julgar.
Trocando batidas de cor
por sentencioso martelar.

Impondo-se e a suas ideias
sem nem ideia do dano.
Numa riqueza-miséria, 
espécie de bosque-pântano.

Onde a Luz não penetra,
embora sem deixar de insistir.
Tornado-se estranho asceta
do verdadeiro existir.

Tudo em conformação
ao estabelecido sem compromisso.
Com descaso da Justiça:
"E eu lá faço caso disso?!"

Em vez de amor, conveniência.
Ao invés de soma, subtração.
E o vazio, insidioso,
em plena multiplicação.

Até vir o ocaso da vida
mostrar a vida não tida.
E a Luz deixada de fora
arrombar-lhe a retina.

Impõe-se-lhe.
Mergulha-o em si.
Num poder inevitável,
qual um sol em chafariz.

E agora tudo queda claro.
A queda, claro, na escuridão.
Quando instâncias já não trazem recursos,
e não há proveito em unir as mãos.

Adia-se a rogativa até que,
em nova chance, 
nova vida,
possa tê-la reta e digna.


CNF-REC, 17/5/2019.

RETRATO (Message in a bottle)

Para Fafá


Uma vontade de amar
nunca antes sentida.
E a moça a que me destino
sem resolver a vida.

Que nem tem resolução!,
não é nítida.
É matéria de construção
(e nunca está construída).

Como nas cantigas de antes,
ela é mui mi'amiga.
Mas não a tenho tocado,
e lhe ofereço a vida.

Ofereço meus predicados,
que são poucos e cada vez mais.
Como ser garoto de recados
de uma vida assaz... Assaz!...

Mas não tenho pressa,
embora não seja enxadrista.
É que não vejo mistérios,
nem sou estrategista.

Sou convicto da força
daquilo que é pra ser.
Aquela coisa tão toda
que nada a pode deter.

E já tenho a humildade
bastante pra perceber
que nem tudo da minha vontade
se destina a acontecer.

Tudo que me for negado
se pareço merecedor,
é um desgosto encomendado
por aquele que já não sou.

Mas quero vê-la plena,
mesmo se não ao pé de mim.
O egoísmo envenena
(não quero ser assim!).

Então o que faço é torcer,
que não é jogo de azar.
E o mais justo vai acontecer
(ah mas você pode esperar!)

AVANTE

Minha alegria está sempre a postos,
não é preciso rogar.
Como o que sabe que se reservando
vai-se deteriorar.

Como a água que sabe, ainda doce,
que seu destino é o mar.
E que no mar não é eterna.
Graças ao sol,
que torna a trazê-la aos céus,
de onde a despeja, recuperada.

A água em movimento é salutar!
(Já é outra coisa a água parada.)
Melhora-se a bem de tudo que toca.

Do plantio.
Do dia de sol.
Do menino sadio a correr no parque,
onde não pode restar.

Vai-lhe custar fazer-se homem,
pra nem assim descansar.
O homem é água também,
e mal sabe sobre o anjo,
a cuja condição, para alçar-se,
seguirá trabalhando.

Sua água, tampouco estanque,
vai fazê-lo transpirar.
Chorar até! (Que que tem?!)
Ela faz o necessário,
apenas não se detém.

Porque da lei do trabalho
somos todos reféns.
E somos os cativos
que nela nos libertamos.

Porque somos os ativos,
ativos porque amamos.
Como nos amamos já sem nos ver.

A marcha é irrevogável,
nada a pode deter!


SAPOC, 17/5/2019.

quarta-feira, 15 de maio de 2019

RECOBRE

Meus olhos quentes de leão
vão úmidos do tumulto da desilusão.
Como os pode haver tão frios
que passem à frente dos amigos,
dos filhos, de tudo!, a tristeza do metal?

Vai-lhes tão longe o dia do nascimento?
(Cresceram tão pouco?)
Por que não veem como é rápido o passo?

Eu me desfaço em lágrimas,
que não choro porque seriam alarmantes.
Eu engulo o instante e choro por dentro.
Minha água não turva o dia de ninguém
nem os faz derrapar na curva.

Nem me nutre, que o excesso é veneno.
O que peço é mais algum tempo para que se possam ajustar.
Ou que os venham levar para onde possam estar ajustados.

Pra onde já não possam impor retardos,
correr pra frente, pro alto,
e suspender a escada atrás de si.

Por que não querem ser felizes
e que todos o sejam também?
Mas só vintém, só prata!
Morte aos sonhos dos nefelibatas,
a todos que querem mar!

Aos domínios de Netuno!,
e fujo à rima pobre,
que no país do cobre
o pobre se pode matar.

LUZES

Todo mal de que estou pejado
vou deitar fora pra alívio.
O alívio de livrar-me
do que me subtrai a meu crivo.

Do juízo mais honesto,
e mais generoso também.
Dos olhos que me perscrutam
procurando minha cota no Bem.

Porque é a essa cota
que aplicarei o fermento,
descansando na verdade
e esperando o milagre do Tempo.

Porque nada há, do sensível,
nada mais sem burla que o Tempo!
No máximo se sente rápido,
ou se sente mais lento.

Mas não existe furtar-se-lhe,
nem a suas potencialidades.
Não se poderá no futuro,
não se pôde em outra idade.

O fluxo é eterno,
e também o nosso, rumo à perfeição.
Já te é dada a angelitude,
é só matéria de extração.

Então abra sua mina,
que ela não se pode esconder.
E deixe minar sua luz,
no seu próprio alvorecer.


CEAL, 11/5/2019.

domingo, 12 de maio de 2019

MANHÃ

Manhã de sábado,
plenipotenciária.
Mesmo se não parece haver
ninguém na minha sala.

Mesmo se no curso da noite
não sei quem coabitou.
Ou mesmo se no bairro distante
não sei do que se cogitou.

A liberdade exulta,
mesmo ante o precipício.
Escolhe-se enfrentar a fera
ou abreviar o suplício.

Com toda escolha algo se atrai,
se algo se trai ou confirma.
Nada de páginas brancas
no livro que se faz da vida.

Vida-escola,
até pra quem acha que não.
Vida-burilamento,
com sentimento e razão.

Todas as faculdades
concentradas para o progresso.
Porque o de melhorar-se
é o verdadeiro sucesso.

sexta-feira, 10 de maio de 2019

TREM SÓ TRILHOS

(pour Vincent et Fernando António)


Olhos azuis.
Olhos castanhos.
Olhos assados, assim.
Olhos sempre tão estranhos
os olhos que olham pra mim.

De cima abaixo.
De baixo pra cima.
De fora pra dentro,
através.
Só não encontro olhos tão doces
que me livrem deste revés.

Ou deste convés
de navegar a solidão.
Onde existem solitários
de sorriso sempre à mão?

Sorriso sempre no rosto!
(A alegria, mesmo se ausente,
sempre encontra algum preposto).

Solitários nos departamentos,
solitários na prisão.
Solitários impercebidos
ganham a densa multidão.

Mas a multidão não pensa,
não trem crivo,
não nota!

A multidão dos esquivos,
do egoísmo,
dos janotas.

Levo-me pra passear
e vejo fora o de dentro.
Ou estou-me tão dentro
que me perco na metáfora.

O essencial é um passo pedir outro,
nem sempre no mesmo sentido.
Poder recalcular a rota,
e Deus sempre comigo.

Porque esse silêncio todo,
sem barulho que o disfarce,
é sua voz cariciosa
que, creio, não terá nunca face.

Nem barbas brancas,
nem valor de superfície.
Deus é o responsável mais remoto
por toda minha maluquice.

Que o livre-arbítrio,
coisa doida,
ora é âncora, 
ora vela.

E agora me despeço ocupado
por mais um dia na Terra.

quinta-feira, 9 de maio de 2019

UM PASSO

Vá,
discreto como os essênios,
ao mais profundo de si.
Perceba o que chora,
o que implora,
o que ri.

Repare o que pede reforma,
labor lento que não se detém.
E note: o progresso da obra
vale cada vintém.

E o vintém só vale suado,
a conquista cotidiana.
Não há de vir de pura sorte,
nem de nenhuma gincana.

Vai o empenhado à essência,
desconhece filigranas.
Sabe ser o consorte
de tudo que em volta ama.

E amar amam todos,
mesmo se não se consagram.
Ama o que se sente inteiriço
e o que se tem por retalho.

Sobra-aqui-falta-ali,
e tudo integrado se completa.
E a cada um que repara
menos um passo pra meta.

quarta-feira, 1 de maio de 2019

FALANDO-LHE (Contigo)

Dizem que somos sementes de anjo.
Sementes. Faz sentido!
Os anjos sendo sequoias centenárias,
ou flores duma beleza tão completa
que nem se entende como existem.

Sementes!
Mas "toda semente traz em si a árvore que será".
A árvore haverá.
Vão-se aliar sol, nuvens, chuva.
Tudo numa curva que nenhuma reta atravessa,
cinde, dispersa.

Tem uma coisa que é bonita,
que a gente aprende:
tudo é muito misturado.

Então tem quem seja capaz
de cooperar com a gente
(e que reconhecemos pela vibração da afinidade).
Mas ninguém deve ser, de verdade, evitado.
Pois todos que não são esses
estão em condições de nos ajudar,
ou precisam ser ajudados.

Queria tê-lo sabido antes.
Nada se justifica:
nem panelas, nem elites,
nem nenhum intolerante.

O dado de sentimentos
é o que Ele nos trouxe antes.
Equilateralidade triunfante
(amor em todos os quadrantes).

Venite! Venite!
Ainda podem vir agora
todos os não vindos antes.
Há uma amálgama que tudo perpassa,
tudo abrange,
tudo faz pela Graça.

O tempo não passará,
pois o Tempo é todo instante.
Ou o Tempo quando visto
é ilusão de delirantes.

Como é bom saber seu posto,
tão pouco e capaz de tanto!
Capaz sempre do bastante,
que a influência foi a mais refulgente,
e o resultado o mais brilhante!

Agora, depois e antes!