terça-feira, 31 de janeiro de 2023

DISTRAÍDO

 Vive-se com 2 escovas no banheiro
como se vive com uma.

Às vezes as coisas claras
tornam a vida mais dura.

Não só percebe quem repara,
nem só acha quem procura.

Mas o dos ventos é verdade:
Só os aproveita quem sabe o que quer.

Pra onde ir
Que roupa secar
Que nuvens afastar.

A vida acontece ao atento
como acontece ao distraído.

Mas quem repara o mundo em si mesmo
vive muito mais bonito.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

SÔDADE (enquanto vou caminhando)

Saudades as tenho enormes,
do que pode e que não pode. 
De muito do que então foi azar
e que, revisto, foi sorte.

Das experiências formativas:
das que me deixaram sorrindo
e também das aflitivas.

Tenho saudades da minha mãe,
saudades da minha vó.
E saudades do meu filho
(que as deveria ter minhas).

E os reencontraria a todos,
os vultos do passado;
os a que o nunca pedi,
mas me podem ter perdoado.

E também aos pobres sofredores
que não perdoaram a mim,
de cujas caras não lembro,
cujos nomes esqueci.

Mas minhas saudades eu sinto
enquanto vou caminhando;
porque muito tenho vivido
e novas vou formulando.

domingo, 29 de janeiro de 2023

O SEGUNDO

Todos os dias
(ou todas as noites?)
a aurora prova que a escuridão passa.

Na vida é parecido,
mas é evento certo
de tempo insabido.

Não importa o quanto você insista
em fechar suas maravilhosas persianas.
Todo mundo sabe que é dia:

Todos sabem que há sol.
Adivinham-no atrás das nuvens.
O mormaço o denuncia.

A ninguém você engana
fazendo trevas, rebeldia.

A vida que você queria e nunca teve...
De boa ela só tem os mistérios.
Toda ela também calor e refrigério.

A ignorância é uma bênção há séculos.
Você só queria o dia se venusiano.
Quase um ano de luz, mas..

Você se prontifica a queimar?

 

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

TAL VEZ

Eu fui.
Vi
.
Nunca venci,
mas tentei.

Ou fiz o que podia,
e que talvez fosse pouco.
Às vezes com discrição,
outras em alvoroço.

Fui admitido,
consentido.
Talvez não aceito.

(Talvez eu fosse indigno
 de amigos tão perfeitos).

Dei meu presente no tempo que corria
sem consultar o passado ou adivinhar o futuro.
Nunca fui tudo isso mas fui-o sempre no duro.

Errei em alguma fração
e o perdão é meia-boca
(quiçá pro meu próprio bem.)

Eu fui muito "eu te amo!"
e eles só "eu também!"

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

EPITÁFIO

Minha companheira foi a Música.
Nunca me desentendeu.
Nunca me desenganou.
Nunca desertou.

Segredou-me o que eu nem podia entender.
Foi-me fazendo entendedor.
Inspirou-me alegrias e consolou muita dor.

Doou-se sem exigir em troca.
Eu nunca nada pude fazer por ela,
à míngua de talento.
Mas divulguei sua palavra como poucos neste reino.

Apenas menos que os pássaros,
os poetas,
os menestréis,
as cantoras,
e os apaixonados (enquanto tais).

Nunca, Música, um amor foi mais conhecido
do que o meu por ti.
Nem Páris por Helena.
Nem Dirceu por Marília.
Nem Romeu por Julieta.

A nossa é relação de que tudo se aproveita.
"É", porque eu partindo não nos apartamos.
Há música em todas as esferas,
música para todos os planos.

Ó, Deus, meu Pai!
Da próxima vez, com o gosto,
dá-me o talento,
a missão,
essa estrada.

Te peço de todo o coração
(e  não te peço mais nada!)

domingo, 22 de janeiro de 2023

LIMBO

Quando se envelhece os amigos
se eternizam e eterizam.
Já a meios do processo temos mais amigos históricos
do que propriamente amigos com que contar.

É retumbante aquela consideração,
já com notas de saudade respeitosamente distante,
como se já estivéssemos mortos.

E de fato estamos.
Estamos milhares de vezes mortos.
Cada escolha que fazemos nos mata
para todas as de que prescindimos.

Ninguém tem tanta vida
Ninguém tem tanto corpo
Ninguém tem tanto tempo
Para tantos amigos.

Sequer paredes na memória para lembranças que doam mais.
Já nos debilitamos.
Já não se é capaz.

Ninguém já aguentaria ser decepcionado,
aviltado, ferido.

Mas há muito o que lembrar.
Muito o que elaborar.
Muito que fazer com isso.

(Quem souber dourar a pílula que escreva o livro.)

sábado, 21 de janeiro de 2023

VAZIO

O ser humano se ilude muito;
amiúde.
Os passáros voam e não têm o céu por garantido.
Morrem e se decompõem sem nem sepultura.

Ou se um doce menino angolano os sepulta,
igual se decompõem.
O céu não é garantido.

O João de Barro constrói o seu lar.
Não lhe pede muito;
que o abrigue.
Outros vão roubar em ninhos alheios.

O céu não é garantido
e, pressinto,
não está cheio.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

VÊ LÁ

Cuida que cuida de você,
mas te controla, te domina. 
Pensa que sabe o que fala
mas não aprende o que ensina.

Ele lá sabe o que é Alceu Valença 
no Marco Zero em pleno carnaval?
Ele acaso já se banhou por horas
nas águas tépidas de Cabo Branco?
Já esteve o mais oriental que se pode nas Américas
e foi ver o por do sol no Jacaré?

Acaso ele conhece o Marajó?
Viu o Solimões beijar o Negro?
Ele tem que elegância?
Que apelo?

Ele sabe o que é?
O que quer?
Ou só tem medo?
Será que vive de verdade
ou sufoca em excesso de zelo?

A vida amanhece,
desabrocha.
A vida cresce,
arbora. 

Temos todo tempo do mundo
(mas não temos tempo de sobra).

domingo, 15 de janeiro de 2023

SANTA CRUZ

Caetano, hoje é preciso desesperadamente escrever um poema.
Implantar uma flor no asfalto onde quer que tenha nascido.
Humanizar o asfalto antes que o asfalto tenha ruído.
Desmantelar brigadas e infantarias.
Ter sonhos de poeta ou criança distraída.

É preciso tocar a flauta que traga a Esperança para fora das pessoas.
Ouvir o canto dos pássaros e o que as matas ressoam.
É  preciso reflorestar o braço armado à maneira de Tistu.
É vital voltar a ver a verdadeira face do Cristo.
É preciso revolver entranhas para resgatar o Eu.
É preciso com urgência lustrar o sonho que se perdeu.

Tudo que nasce faz-se do nitrogênio do morto.
O futuro do país livre, dos destroços do império deposto.
É preciso alegria corajosa, que enfrente a tristeza sazonal.
É preciso de cada luto reinventar o carnaval.
Avancemos no nosso ritmo, mas avancemos sem detença.
Devagar e sempre, certamente sem marcha à ré.
Avancemos iluminados pelo facho insistente da fé.


quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

BRILHA TUA LUZ

Minha mãe, insone,
gozava a abertura 24 horas de estabelecimentos.
Os que não visitava sequer durante o dia.
A só possibilidade a encantava.

De mais a mais não dirigia.
De menos a menos jamais confiaria no nosso transporte público
a desoras, em nossa cidade insegura.

Como ela diante da noite eu diante da vida.
A só possibilidade de tanto acontecimento me preenche.
Sou grato porque ela existe.
Sou grato porque exista.
Agradeço, mas do fundo do peito,
por este livre-arbítrio que não sei levar aos cimos.

Nem aos dos inócuos materialistas do mundo,
nem aos dos Franciscos de Jesus,
em Assis, em Pedro Leopoldo, ou em uma Roma menos dourada e mais argêntea. 

Sim, existe!
Morrerei afirmando-o.
Nem precisava ter fé maior que a tinha Tomé porque vi:
Mesmo diante da perseguição da fera ao abismo se escolhe
morrer da queda ou mordido.
Mesmo o trem sendo imposto e o vagão não sendo escolhido,
escolhe-se a viagem em pé ou atado em cinto.

Toco-as. 
Minhas chagas são voluntárias.
Fiz mais escolhas, eu e vocês, 
do que admitiríamos.
Mesmo do ponto de vista míope de só esta existência.

Mas até aquele livro ruim, daquele autor canhestro,
teve mais de uma encadernação e vendeu-se em euros.
Imagina você, que não escorreu ao papel de uma pena débil,
mas se criou pela vontade de uma Força incompreensível!

Exerça-se, vai!
É o mínimo!

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

LIVROS

 d'après Walter Hugo Mãe

Mãe, a verdade é uma certeza na existência
e uma incerteza na compreensão. 
Tanto faz a língua,
pouco importa a tradição.

Para toda santidade existe uma função,
mas nem toda função redunda em milagre.
Nem toda condição deve ser suavizada
ou toda rota alterada.

(Não à revelia da mudança de quem caminha.)

Você está certo, Mãe.
Todos os pecadores existem tragicamente na carne de Deus,
e nada Lhe escapa à autoria.

Esse livro que a Ele atribuem, 
para mim só muito depois da poesia se pode ler.
Talvez eu seja uma criança muito mais adiada que você.

Talvez já me tenha fervorosamente despido de tudo e caminhado o mundo.
Despido talvez de sentido, porque despido de razão.
Invisível, incompreensível.

Sim, ser feliz implica a questão da tristeza.
Ser feliz cansa, "mesmo vivendo na França,
mesmo indo de avião"

E eu vou aéreo sem decolar.
Talvez o mesmo do colégio,
sempre escolar.

Todas as coisas escritas são milagrosas.
Milagres em versículos, versos ou prosa.

Deus falou Matemática e os planetas se atraem,
a música se concatena, a física sustenta edifícios.
Mas vamos tocá-lO em palavras,
grandes ou pequenas.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

RECENTE

E o mundo nasceu,
para meu grande espanto,
que já pensava que pudesse haver em lugar nenhum.

E isso não seria inexistir,
mas sobreviver à extinção dos mundos prévios,
que eles não me interessam, 
na sua esterilidade ontológica.

Mas o meu preconceito atesta minha ignorância
(como todo preconceito atesta ignorância);
aqueles mundos são poeira cósmica,
a matéria prima dos vindouros
(como nós neste, ao nos decompormos).

Superar a ignorância talvez fosse bom,
mas eu, pobre de espírito,
só aspiro voltar ao colégio para gozar férias escolares.

As únicas que se dão a quem tem o mundo a seus pés,
sementes de tudo.
Cientistas, atletas e poetas do futuro.

Eu não ouso falar em futuro.
Desdenho regras de previdência.
O pé-depois-pé é toda a minha ciência.

Eu sinto, não sei descrevê-la.
Eu sinto!
Ei-la inteira.