domingo, 14 de abril de 2024

SER E ESTAR

A vida é chama e consome tudo
sem que o distraído o tenha dado por existido.


A vida chamou para outro lado
os amigos que casaram e os com filhos.
Levou longe os amigos que se ordenaram
e as amigas que tomaram o hábito.

A vida age sempre,
quase sempre sem espalhafato.

Num dia os programas abundam,
e precisam ser sorteados.
Noutro dia você gosta 
quando nota que está isolado.

Por um tempo parece reversível,
mas uma estranha vertigem impede o gesto.
Depois parece impossível,
ou que provoca tédio.

Mas a vida que foi, isso é lógico,
não pode seguir sendo.
Nem a musculatura poderia sustentar o aceno.

Parece que não sigo sendo,
mas me sinto dilatar.
Até preencho o recinto com o meu jeito de estar.

Mas a vida segue tramando e,
num susto, esta já é outra coisa.
Tudo, tudo cansa
e quem muito voa também muito pousa.

sexta-feira, 5 de abril de 2024

GALOS

O Cabral que não descobriu mas fundou um mundo
disse que um galo sozinho não tece uma manhã. 
Acompanhado, tece.

Bem acompanhdo é alvoradeiro, 
traz o dia feito em seu celeiro. 
Não precisa de carro,
não precisa de mitologia.

Só precisa essa forma tão pura de alegria chamada encontro,
ou ponto de partida.

E canta toda madrugada.
Canta quando a noite já está cansada,
mas segue sempre dedicada.

A noite. O canto. O ponto. A vida.

domingo, 31 de março de 2024

FLORAÇÃO

Enquanto a ilusão é possível,
desfrute-a.
Na frutescência da desilusão.

Elas se encontrarão brevemente,
e se despedirão.
A sentidos opostos, da mesma direção.

Nesse momento, tenha coragem.
Acene a ambas com cortesia,
e as despeça igualmente.

Há tempo para que outras frutas se apresentem.
Há estações, constantemente.
O trem que se vai... nem tente.

Essa linha não se fez para pés,
fez-se para o ferro.
Você que, de carne, em carne se sutenta,
aguenta!
 

sexta-feira, 29 de março de 2024

terça-feira, 26 de março de 2024

CLÁUSULA PÉTREA

Sim! Para frente é que se anda,
"para a praça, ver a banda passar".
Mas os seus erros passam recibo.

Ou assinam nota promissória,
um qualquer compromisso.
Vozes não são tortura, não são loucura.
Talvez vozes sejam procura.

Onde estão, de onde vêm?
Já estão, quando as ouço,
tão caladas quanto apagadas
as estrelas que vejo?

Nada tem volta, não tem jeito!
A lei de destruição é do arcabouço perfeito.

(Como também a do recomeço...) 

sábado, 23 de março de 2024

SAL

Choro, não mostro.
Lá fora não cai água alguma.
Cá dentro a chuva inunda.

O Sol recusa seu calor,
e as estrelas maiores tão distantes. 

Sozinhos um e antes.

quarta-feira, 20 de março de 2024

SE DOA (edit)

Não puxo muito o fio.
Respeito o tempo do novelo,
mas confesso que gosto de vê-lo
desfiar-se em lentidão.

(Novelo não desfia à toa,
ele se doa à confecção) 

segunda-feira, 18 de março de 2024

MA NON TROPPO

Jogos tortos,
pódios inúteis.
Como lhe são importantes
as coisas fúteis.

E quando pensa em si mesmo,
vê apenas o corpo.
Depois me perguntam como
me tornei misantropo.


domingo, 17 de março de 2024

DO CANTO

Canções de amor podem ser absurdas,
como o erro de um iluminador que foca a porção vazia do palco.
Como procurar a fala depois dos dois pontos e do travessão e só haver espaço.
Ou se perguntar que ponto final de fato encerra o assunto.

Canções de amor deviam ser proibidas na madrugada,
quando me sinto defunto.
Quando o corpo está desalmado e o espírito é foragido.
Canções de amor cruéis, sobre o que não tem acontecido.

Sei que são feitas para outros,
mas parecem falar comigo.
E guardo-lhes as dicas: o amanhã nunca sabe
(vamos ver como é que fica).

sexta-feira, 15 de março de 2024

RETROVISOR

Quando tudo eram flores
nos atínhamos às armas.

E quando tudo era livre,
vigiávamos as amarras.

Era flagrante a fragrância
que eu, então, não senti.

Não via o que era vivo,
e, ao que vejo, morri.

segunda-feira, 11 de março de 2024

FORTALEZA

Sentir-se forte
e ser o fraco de alguém.
Ou sentir-se em ponto de bala
e ser o ponto fraco de alguém.

Uma debilidade transferida,
uma fortaleza adiada.
Como agora estão indefesas
as portas da minha casa! 

domingo, 10 de março de 2024

NA MANHÃ

De um sábado à noite
já ninguém espera nada.
Sou apenas uma alma
insistindo em estar acordada.

Talvez estivesse melhor
dando a vez ao sonho,
ou recebendo instruções
para além deste plano.

Mas a música soa.
Alterna afagos e tapas.
Consola e caçoa.
Deixo tocar as ruins
e faço repetir as boas.

Essa gente que compõe
é feita do mesmo material.
Tem hora que sofre,
hora que encanta,
e hora em que soa mal.

Mas  madrugada é mágica.
Parece até um pouco o amor:
não acaba por se gastar.

Então invisto na madrugada,
para ver onde vou chegar.  

terça-feira, 5 de março de 2024

SOLZIM (Que cê conta?)

Ninguém está por sua conta,
e ninguém as pede a você.
Você paga as suas todas
(e a vida parece à toa...)

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

DEVOLUTO

Noite de hotel... em casa.
Cidade em que não há guerra,
mas tudo é terra arrasada.

Cá dentro trincheiras prontas
pra guerra que quer ser travada,
em terras devolutas a serem reconquistadas. 

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

É DIA

Precisava escrever
e nada me saía.
Comecei com a coruja,
terminei com a cotovia.
E se a noite foi deposta,
repristina-se o dia.

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

QUANTO ANTES

Há quem seja vento em popa,
em apoio às velas.
Há quem seja âncora,
terra.

Há quem brinde a todos com luz e quem a encerre.
Há quem nem tente e quem erre.
Há o que persiste até que acerte.

As estradas são muitas.
Estrada é decisão?
(Há quem prefira deitar-se no chão).

Mas a estrada não consente,
a estrada insiste.
É obrigatório alcançar o limite.

Quanto mais esforço
quanto antes.
É crime grave matar o instante.

O instante pulsa.
O anjo chama.
A vida não cessa.
É  impossível abandonar a meta.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

SE ENTRETECE

As pessoas nos amam com o que podem e o que são,
não como a gente quer ou julga que merece
(amam como conseguem).

Por isso o amor não é decreto,
acontece.
Quem sabe amar não exige,
entretece.

Do amor se lembre antes
de tudo o que não se esquece.


quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

DISFARCE

Não se apegue à máscara,
ela não te favorece.
Ela apenas faz lembrar
o que jura que esquece.

Melhor sentir o sol.
Melhor receber o vento.
Melhor estourar o claustro,
do fundo desse convento.

E se te baterem na cara,
oferece a outra face.
Toda sinceridade
é mais bonita que o disfarce.

SAZONADO

Tem opresso na mão
o coração.
Ele parece que queima,
mas não.

Não é o caso de arremesso.
Não é o caso de vesti-lo,
como se fosse adereço.

Não é o caso de liquidação.
É melhor o caso de oferta,
numa sincera estação.

Até lá pode cuidá-lo.
Pode até guardá-lo no peito.
Ele saberá emergir

quando for o tempo perfeito. 

domingo, 7 de janeiro de 2024

FOCO

Em dúvida sobre onde reside maior beleza,
na aurora ou no crespúsculo,
vivo para ver o dia chegar e o Sol se despedir.

Nada, então, está parcial em mim.
Sinto, inteiro, o desejo de totalidade.
Eu resido no mundo, não nesta cidade.

E mesmo essa amplitude me parece parcial.
Sinto que, quando penso, o meu raio é sideral.

A vida pede crescimento e,
se me distraio,a dor o impõe.
Por isso vivo melhor atento
ao que só o amor constroi.


sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

MATOU O GATO

A porta está aberta;
ninguém entra, ninguém sai.
Ao que tudo consta,
facilidades não atraem.

Estivesse a porta fechada,
quereriam ver do outro lado.
Bateriam nela,
ou a tentariam explodir.

Por isso essa porta aberta
me faz muito mais feliz. 

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Tenho uma certeza esquecida,
uma foto esmaecida,
de um futuro que quer ser. 

Uma saudade confusa,
claridade noturna,
do que me convém fazer.

Um lugar em que estar,
com pontes a atravessar,
demolidas ou por construir.

Então preciso apertar os olhos
e buscar ao peito o espólio
do que ainda está por vir.

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

NO OUTRO SENTIDO

Deambulo pela cidade
em que você também mora.
Nem tão longe assim,
nem tão perto quanto outrora.

Aquelas canções são outras,
e estas pessoas nunca existiram.
E talvez volte a ser assim
(e pelo mesmo motivo).

E você quer tanto ir embora!
(mas nem a morte é ida sem volta)

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

OBRA NOSSA

É preciso uma paz que resista ao tumulto.
É preciso sossego no mundo.
No mundo íntimo, o único minimamente passível de controle.

É preciso ser você na torre, para o comando de si.
A paz só pode começar ali,
com vista para tudo que nos acontece
e selecionando a resposta.

Não digo que seja fácil,
mas é preciso fazer a aposta.
Só ganha quem arrisca.

Também sei que o mundo o complica,
mas ele é do mesmo tamanho por dentro e por fora
(mas o de dentro pode ser obra nossa).