domingo, 26 de março de 2023

NOITE ADENTRO DIA AFORA

O Sol dando diariamente
a lição da persistência
é muita vez toda a ciência
necessária a estarmos.

Outras é bom a completarmos
com a da noite, que o cobre,
doce, e dá descanso ao nosso
"tentativas e erros".

ÀS vezes é bom nos determos,
olhar pela janela.
Ver se o trajeto é mesmo
o que se desejava.

Pois o trajeto é tudo,
esta estrada.
Não vamos chegar a lugar algum.

Pouco importa o que dizem
os sábios da consumação,
que não são sábios consumados
(não é possível ser um sábio consumado).

O mundo explode de mentores,
mas não é preciso suportá-los.
É preciso nos formarmos,
forjados na dor e na alegria.

Na comunhão.
Na atenção.
Na respiração.

Contemplar.
Buscar entender.
Integrar
e crescer.


sábado, 25 de março de 2023

SE PUDER, MORRA SORRINDO

As alegrias não se requentam
tão bem quanto as pizzas.  
E quem quiser insistir, bem,
quase iludirá os sentidos

que, distraídos,
famintos de satisfação,
vão receber o golpe
como se fosse nutrição.

O passado não nutre.
De passado só vive o abutre.
Mas há um ciclo, todos dizem,
sem que haja forma de o negar.

Morrer, nascer,
colher, plantar.
Com muito mais detalhes
do que qualquer fórmula abrigaria

(E nem posso verter em regra
o que é experiência minha).

Que já vivi,
revivi.
Fingi que não vivia
e fingi que não morri.

E que ainda creio estar lá,
quando nunca saí daqui.

sexta-feira, 24 de março de 2023

FRIAGEM

À junção de água e sede
não devia faltar nada.
Mas o leito do rio secou
e a sede já vem saciada.

Vivo com cuidado:
Um bruto delicado,
com medo de se quebrar.

Enquanto poetas cantam a febre,
levo três dias com frio
sonhando a hora de deitar.

Entoo graças a Deus
pela cama, a coberta,
pelo gato ao pé de mim.

Esta hora é tão conforável
que quisera viver assim.
Noite adentro,
dengo do meu próprio calor.

Gymnopedie nº1 tocando em looping,
que o resto o corpo rejeita.
Nem tenho forças pra esta caneta
(quanto mais mexo, menos se ajeita)

terça-feira, 21 de março de 2023

NÃO TEM DIA

A poesia não tem dia.
A poesia fulgurante,
ou a poesia insípida.

 
A poesia já não será
como antes acontecia.
À margem das efemérides
e das coisas conhecidas.

A poesia que se gritava,
a poesia que se cifrava
a poesia que arrefecia.

A poesia soturna,
a poesia noturna.
A poesia não tem dia.

segunda-feira, 20 de março de 2023

DIAMÔ (Palpitação)

Como são naturais e universais as canções de amor!
A ponto de empolgarem os que não amam
(ou assim creem). 
Quer sejam as sofridas, as espirituosas,
ou as de arrebatamento puro. 

No corpus das canções dos Beatles há mais "love"
do que qualquer outra palavra.
(O amor é uma fase
que pra sempre fica marcada).

O amor quando não é o estado é desejo.
O amor está em tudo de permeio.
Espécie de seiva, acho que só falta
onde a vida se ausenta.


(Amor, insidiosa presença!)

E goteja, vaza em notas e melodias.
O amor, a grande família.
As canções, a companhia,
mesmo até se um pouco amarguradas.

Sem canções e amor não se faz nada!
Não de verdade, embora fingir sempre se possa.

Mas não essa febre,
não (e nem se deve) essa bossa. 
Ausente, o amor é fossa,
que também é aposta (rentosa) da canção.

Não sei cantar.
Não sei tocar,
mas entendo de palpitação.

domingo, 19 de março de 2023

GARRAFA

Madrugada, casa desvairada do pensamento.
A música impede que a escuridão se faça.
Aclara, numa contraordem ao contragenesis.

Madrugada de domingo, antídoto do tempo.
Nada liberta mais do que essa espécie de paralisia.
Olha-se para o passado como para uma vida dentro da vida. 
Não pode ser restaurada, nem pode ser esquecida.


O passado pode ser revivido,
apenas em reinterpretação.
Então alguns acham que era melhor não ter acontecido.
Outros entendem que isso é parte do que vão feitos.

Do passado e seus efeitos.
"The karma cops are coming after you".
São lentos, mas podem ser terríveis.
Que te encontrem trabalhando, dizem.

Eu reelaboro.
Coloro, melhoro.
Tudo fica tão bom que mal se entende ter-se deixado atrás.
O passado, de madrugada, é bonito demais!

Os bêbados fazem ligações,
mas eu sou abstêmio
(então escrevo).

A mensagem na garrafa na deriva da canção do Sting.
Parece que não, mas atinge.

sexta-feira, 17 de março de 2023

4605

 Minas jamais será um quadro na parede. Quanto mais me afasto, mais o vejo. É fato, como o sair da ilha de Saramago.

Minas, que não tem mar, mas tem rio pra todo lado. Rios que eu sequer frequento, mas são fonte de vida e morada do mistério.

Por isso Minas nunca acaba de se entender. Nem com o auxílio compendioso de Rosa, nem se desdobrando Drummond como uma sanfona de trocentos baixos.

Nem com tudo que se entoe por sobre a viola caipira. Em Minas eu não toco campainha. A chave não é emprestada e é molho.

Em Minas eu até me sobro, mas como marca do conforto. Em Minas sou filósofo (e o tempo então nunca está morto).

Minas é o porta-aviões. Dispensa canhões, e é o céu que eu navego. Sol, se feliz. Lua, se circunspecto.

Minas, bem mais que afetos. Minas-sina, Minas-teto. Em Minas minhas, em vias aberto.


Gilberto Freyre (Guararapes), 17/3/23


quarta-feira, 15 de março de 2023

DANÇA (Mamede)

 O mundo às vezes parece querer empurrar-me de volta ao útero. Mas já não há útero à disposição. Então penso em apenas voltar uma estação ou duas.

Mas não posso trocar de lado com este bilhete. Então sento, abro um livro, e procuro extrair o que consigo. 

Deixo passar um trem ou dois. Temo a baldeação de depois e invejo a estupidez desse fumante, que acha que consome algo, enquanto a estupidez o consome. 

Atira, maneiroso, esse resto que é de si próprio. Até afeta propósito, enquanto cai à sarjeta. Depois verá a inundação da rua meneando a cabeça e culpando a prefeitura.

Mas já me distraí mais do que a cena vale. Guardei algo do livro pra mais tarde. Depois de retomar o vagão. Este lugar aconchegante em que não se fuma, nem cigarro, nem espuma, e só há nuvens de preocupação. 

(Tanta cara compungida à cata de explicação).

Ninguém vai achar. Parado o trem é preciso caminhar, ou depressa ou devagar, mas a rua novamente se ganha.

Mais uns passos e já não é tão estranha. Acerto o passo e já até tenho ritmo. Mais até do que acredito. Vou agendar aquela aula de dança.

Recife, 14/3/23

terça-feira, 14 de março de 2023

F#

 O pai da moça (como minha mãe o chamava) dizia que, pra cada carta de amor escrita, uma se queimava. E quem não as queima acumula.

Mas a carta de amor real só se escreve sobre base nula. Não se erige sobre nenhuma, ou é sua própria deturpação.

O amor quando bate tudo a si reclama. Tudo é sua cama, mas cama só sua. O amor que tal não é avenida mas rua, ou é estrada vicinal.

Essa noção não vem de fábrica mas se aprende. O amor é paciente. Tem de ser! O amor sempre empreende.

O amor inventa o mundo. Inventa-o todo, mas segue sendo terra, mesmo se se sente o céu.

Mesmo se seu signo é o fogo, se queima delicioso, se consome sem exaurir.

E porque é terra o amor também erra; porque equívoco e porque vagueia. (O sangue não "errou de veia e se perdeu"?)

Mas e o amor "ainda"? E o amor "de novo"? É também a alegria do povo? Segundo tempo, prorrogação? 

Mais e mais esforços rumo à taça, o amor procura mas não acha, nem nunca dá a coisa por finda.

O amor que não joga a toalha ensina que as coisas infinitas, essas mais que "muito mais que lindas", essas nos salvarão. 

Recife, 13/3/23


sábado, 11 de março de 2023

ESCORRO

 Quando me despejo de volta ao dia preciso que a música amorteça-me a queda. Do alto devaneio em que sonhava ao chão do real está o verdadeiro salto mortal.

Das culminâncias do sonho à confusão da vida de relação, onde encontro gente que diz ter sonhado "algo louco ", que "nada tem a ver".

Só não tem nada a ver quem nada quer enxergar.

Querida, acaso não prestou atenção à vida? Não te parece acaso mais louca, feroz até? Assim acaba devorada dos pés à cabeça (ou da cabeça aos pés).

Não que alguma ordem te importasse. Mas preste atenção!  Se descobriu o sentido da vida está à porta da verdade mais dura. Prestes à maior loucura, ou apenas à real.


Recife, 11/3/23.

sexta-feira, 10 de março de 2023

TERRA TERRA

 A sua presença no meu recinto, sinto, não é nenhuma invasão. A sua passagem é outro avião, e dá asas ao meu desejo de retorno.

Este vir foi voltar, a isto que se proibiu e insiste. A dimensão perdida que é o Recife, que alguma vez dá medo de encontrar.

Nem  tudo que nos chama nos chama para o seguro. Há muito proveito em muito apuro, mas não é preciso apurar-se. 

Há tempo. Há revezamento. Fui-vim, volto, respiro e tento, tranquilo, entender o que isto é.

Porque quando pareço aproximar-me soa o alarme que eu mesmo armei e me sinto injustiçado. Sinto que fui razo onde devia ter aprofundado. 

Mas a cada relance mesmo a superfície já é tanta. Sem qualquer esforço me alcança e me distraio de novo.

Não reclamo porque não tenho compromisso com o fundo da questao. Apenas a questão me intriga. Talvez melhor não resolvida,  e sempre a me interrogar.


Recife, 10/3/23.

quinta-feira, 9 de março de 2023

EMPENHO

 A criança, logo que brota, chora. Chora da ignorância de tudo. De não saber quem é, quem somos, que é o mundo.

Tenho saudade de quando me faltava o estudo, de estar horizontal e inculto. De sofrer sem saber que sofro, e sofrer o que é.

Passaram-se esses anos todos e estou marcado. Não vi o que me marcou. Pertenço.  Sei um pouco mais quem sou, mas sou detento.

Cada liberdade de escolha me atrela, por não ter feito outra, aquela,que me prenderia de outra maneira. 

Fiz isso a vida inteira e ainda não faço tão bem. Mas sei que sou ajudado, deste e de outro lado, mesmo se distraido.

Faço o melhor que consigo, de que se infere tentar bem muito. Investir o meu tumulto, minha ordem, minha presença. 

É intuição e é ciência. É causa e consequência. É estrada, é estação. 

É para frente, parando e sem volta. Não aproveita revolta. A hora é a do empenho.


Recife, 9/3/23

quarta-feira, 8 de março de 2023

SINAPSE

Você me bateu, e não sei se me bateu pr'eu gostar. Tapa surdo, pro meu grito mudo, que não sabe se é pra gritar. 

Acho que te conheci pra saber o que não posso, que escrever não é o meu negócio (porque meu meu negócio não é sofrer.)

Às cifras da canção tenho acesso desde 94 e nada soa, porque ainda não sei tocar. Não que isso me torne estúpido, o cifrado não se destina ao mundo, que um pouco só premia quem sabe decifrar. Quem sabe cantar, quem tange a lira.

O delírio,  não.  O delírio só se aplaude impercebido, o delírio clandestino (quem o aplaude, então?).

Os amigos imaginários, do banquete como inventado. Eu os prefiro à gigantesca família castrada, cada um manejando sua convenção.

Conforme, parece tudo tão complicado, mais amplexo que um abraço e, indecente, é mais ósculo que um beijo seu.

A luz natural só dura o dia, e na escuridão se abriga, em desaparição. Mas, você sabe: para tudo tem um jeito; interruptor, lâmpada, dedo, e prestar muita atenção. 


Recife, 8/3/23

terça-feira, 7 de março de 2023

DESLEÃO

Quando viajo saio de mim e me levo junto. É como melhor me aventuro, com esta companhia massa que Deus me deu e aperfeiçoo.

(Juro!)

A alma passeia e recolhe impressões, e se metamorfoseia. É impossível manter o prumo sem desmontar-se de quando em vez.

Revisar os componentes, olhar, entender. Fazer as melhores combinações, depois oferecer-se reconjuntado a essa muita outra gente que também se quer melhorada.

E com tanta andorinha junta dá pra fazer muito verão. Dá pra fazer até mais (em qualquer estação).

Pouco importa o calendário, a cor das folhas (se folhas há). Hoje é o mais aprazado dia pra começar. 

Hoje, hoje ainda, mas amanhã e depois também. O cativeiro foi estourado (Não posso ficar meu próprio refém).


Recife, 7/3/23

segunda-feira, 6 de março de 2023

TRÊS ESTRELAS

Chuveiro desligado na Data Magna. A Revolução é quente, e é compartilhada.

A aspiração é ser livre. Que rei que nada! Nem metrópole, nem soberano. É muito mais simples ser pernambucano.

Não ser vassalo, não ter susserano. Ser donos do mar, donos dos campos. Pulsar o coração apesar de toda razão, todo cálculo, todo plano.

E já não estou certo do que estou falando.


Recife, 6/3/23.

sexta-feira, 3 de março de 2023

SANTA CRUZ

Badalam os sinos no Pátio de Santa Cruz.

Pouco, mas sempre, como quem sugerisse um decantado erro de associação. 

Mas eu nasci leão e insulado numa esquisitice muito própria.

Decerto não nasci santo nem me tenho feito, embora me sinta predestinado, na condição humana, a uma angelitude distante.

É também fato notório que adotei a cruz. Não a cruz sob a qual todos vergamos, na imprescindibilidade de lutar o dia.

A cruz que apenas simbolicamente invoca esse Cristo tão doce que eu queria que eu fosse.

Nada de jogar cristãos à cova dos leões. No mar, em terra, na ilha, em mim tudo se reconcilia.


Recife,  3/3/23.



quinta-feira, 2 de março de 2023

RIBEIRA DE MAR...

Amanheci com Cabral.
Entardeci com Clarice.
De noite Gilberto Freyre
me explicou o Recife.

Manuel dá Bandeira 
de que alguma infância sempre está neste estado.
(Pernambuco nunca pode ser superado.)

Alceu, Chico, Lenine, Duda
dão o tom do que quer que me instale.
E o avô da minha avó então soube
que não se pode deixar a cidade.

CURTA

 A vida é chama,
clama
abrasa.

Mas a vida chama
(separa).

Tantos caminhos,
tanta gente.
A vida são opções
divergentes.

A vida se insinua,
uns a acham sedutora
(outros apenas torta).
E muita outra gente
preferia estar morta.

E quem prefere o decesso
já vem morto em vida.
A estrada nem sempre é fácil,
mas é melhor cumprida.