terça-feira, 24 de março de 2015

CELA-CANTO (Herberto Helder)



Para o estiolado deste, 
o de ao lado.

Ainda ontem eu falava de si.
Falava de mim, de ti.
Falava as estiolices que te colhi,
em que me acolhi.

Em que me encolho.

Tu és o que eu escolho,
o que escolhi.
Franzi o sobrolho
e não me atrevi.

Quis,
como quis!

Tanto quis que selei o canto,
encantei-se-me de ti.
E desci.
Em algum ponto eu desci.

Enalteci.
Enalteço.
Eu não te mereço,
e trago-te aqui.

Eu o tenho tragado sempre,
entranhado sempre,
estragado-me sempre,
sido sempre o nunca.

Rematura-se a casinfância,
e a estâncias eu morri.
Em todas as distâncias
que contigo eu percorri.

Mas não as consigo percorrer,
eu sou o só de correr.
Mas os olhos não correm,
detêm-se.

Eu sou detento!

Eu sou o que tento!
Não consigo!
Nem contigo,
nem se só me empenho.

Eu me empenhei!
Empenhei tua palavra!
Eu me travei!
A trava era a porta da casa!

Disse-o à moça a quem te apresentei 
num ontem que já era hoje,
que sempre te será ontem,
não importa sob que nome,

nem o nome do país!

Eu juro que entendi!
Juro que o ia entendendo,
e a alegria que te viam
eu a ia escondendo!

"Isto não se lê assim!"

Acaso não veem o que vejo?
Está em tudo!
Está no meio!
Parto e parto-me ao meio:

Todos os lugares são no estrangeiro!

Como é que agora partes,
sem antes te teres repartido.
Não te dividiste comigo,
Eu me dividirei até o fim!

E a dívida só aumenta,
e nada do que isso me renda
pode fazer com que eu aprenda
a já não mais me render!

Vou continuar a fazer o meu poema,
o (de) contínuo,
continuamente aprendiz
disso que nunca se entende.

Na repartição em que esse
te estavas prebendo,
sine cura
e me prevendo.

Ócio! Ócio! Ócio!
Qual é o no me do negócio!?
Gabriel, isso não é negócio!
Eu não vi vantagem!

A vantagem que tinha era a dos anos.
Os anos se iam passando,
as retretes te escondiam,
os trens partiam a Antuérpia.

Essa terra nem existe, camarada!
Mas como que não!?
Ela está no mapa!
O mapa não leva a nada!

Nadam-me mapas em águas
escuras e profundas!
As águas turvas em que surjas
fazendo a luz na ponta dos dedos!

Crianças, isso não é brinquedo!

Não brinquem com fogos
ou se queimam!
E pode ser que nem entendam
o que os está aprendendo!

Contei a ela tudo,
tudo sobre o estudo.
A meditação em que me meti!
A loucura em que me intrometi.

Larguei a família,
matei-a.
Não fui ao cinema,
mas fui à veia.

A veia era mel pra mim,
escondido, sozinho, aqui!
A vitrola e uns livros,
tudo o que me livro

como te aprendi!

Sinto que o mundo se esvazia.
Já vazava e ninguém via,
o que é que se queria
quando facas cortavam o fogo!?

E o nome do jogo?!

Que facas são essas?!
Tu que não o impeças!
As regras são esta:
Às réguas, e que se meça!

Não aprende essa gente!
Querem o canhão lírico,
querem a usina da metáfora,
querem torná-la cansada.

Não descansarão até que o façam.
Não veem que me embaraçam?!
Dizem-se os meus irmãos.
E eu só os tenho plantados no chão.

"Toda semente traz em si
a árvore que será".

A árvore será?
A árvore de cera,
no museu que merecera!

"Era uma criança,
não se aguentou!"
"Sei coisas terríveis
sobre o mundo!"

E me querem dar barbitúricos?!

Sepultai-vos!
Erguei-vos!
As crianças perdem-se na noite!
Todas sentiram o açoite!

O açoite sempre esteve lá!
Apenas não o quiseram enxergar.
Que mania têm de enfeitar.
Têm toques de floricultura!

Ouvi Bach também!
Quase me aniquilei.
Matemática?
Não alcanço...

Há vida li,
muito!
"como uma acontecimento excessivo".
Eu de excessos nunca me privo!

"Se não quer dar em pantanas",
se já não se engana,
engaje-se em um estilo,
diga não ao estio!

"Está a ouvir como essas enormes crianças
gritam e gritam entrando na eternidade?
Note: somos os poemas onde elas se distanciam.
como? Loucamente.
Quem suportaria esses gritos magníficos?
Mas o poeta faz o estilo."

Eu me arrepio!
Chamam-me na hora do capeta!
A chama se me hasteia
Eu não suporto bandeiras.

Mas tenho o demoníaco
júbilo da poesia.
Sempre que me vem a maré
e a lua está cheia.



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